
Não quero te falar, meu grande amor,
das coisas que aprendi nos discos.
Quero lhe contar como eu vivi,
e tudo que aconteceu comigo
Trabalhar em uma drogaria tem aqui suas peculiaridades. E realmente quando você fica das nove da manhã às sete da noite praticamente o tempo inteiro em cima de uma motocicleta, acaba se acostumando às mil coisas que vêm à sua cabeça. Mil músicas, mil sorrisos, mil idéias, mil piadas, mil mimimis, mil assobios, mil pessoas. É mais estranho ainda quando eu me pego imaginando alguém na minha garupa, com diálogos inteiros e etc.
Eu estava acostumado ao trabalho de ter que preparar aula, pensar nos exercícios, caçar um texto bom, uma música num contexto, e isso dá um trabalho e uma certa ansiedade, medo mesmo de um tal ‘fracasso escolar’. Hoje não. Eu acordo, faço tudo que tenho que fazer e vou trabalhar, simples assim.
É claro que uma coisa não tem a ver com a outra. Eu não estou fazendo um elogio da inércia intelectual, mas ter a oportunidade de conhecer os dois lados dessa moeda que é o mundo cão, o mercado de trabalho, a classe média, a dinâmica das relações comerciais, os obrigado viu-obrigado eu, essa experiência é impagável.
Uma vez eu li o Amarante dizendo que “brincar é a coisa mais séria que tem”. E graças a Deus eu conseguia fazer isso antes e agora também. No cursinho você podia fazer piadas quaisquer, piadas sobre a matéria, sobre os textos, sobre o Corinthians, sobre A fresno, piadas sobre os alunos, e essas eram as mais engraçadas.
E olha só minha sorte de hoje: Encontre a felicidade no seu trabalho ou talvez nunca saberá o que é felicidade. E não é que é? Uma entre mil sortes de hoje fazem total e absoluto sentido.
Pra minha sorte lá na farmácia a gente tem algum tempo pras piadas. A começar pelos codinomes que eu fui ganhando ao longo do tempo. O seu Adauto, que sempre é um dos primeiros a aparecer por lá, me chama de Lingüiça, talvez pelo meu porte não muito Atlético. O Ricardo, que se diz meu gerente, me deu uma coleção de apelidos: o mais recorrente é Frango. Depois vem Grilo, Chassi de grilo, Neguinho, Menino fruta, Menina moça, etc. Às vezes aparece, como se não fosse costume da Vila Cardia inteira, o recorrente Jorginho [vai ver ele só fica me apelidando porque perdeu pra mim no braço de ferro. Mas talvez ele só tenha perdido pra mim porque tinha perdido pro Wiliam antes, senão ele com certeza me derrotaria. Mas talvez também ele só tenha perdido pro Wiliam porque, segundo Marx, o braço de ferro reflete as relações de poder da sociedade classista, dominada por quem possui os meios de produção]. O único que eu consegui apelidar com sucesso foi o motoqueiro da Bauru Fórmulas, o Cláudião, que já se tornou o Ghost Rider, ou motoqueiro fantasma, já que ele não consegue pronunciar americanizado assim.
O Wiliam, dono daquelas drogas todas, tarjas pretas, similares, psicotrópicos ou não, não pode me ver chegar da rua com o capacete na mão que diz: “E aí menino Jorge.” É infalível. Ás vezes ele tá ocupado marcando remédio na falta, vendo promoção das lojas Americanas na internet, conferindo nota fiscal, dando conselhos pra senhorinhas [e o vômito, melhorou?], mas o “E aí menino Jorge” é inequívoco.
Talvez vocês não saibam mas existem as piadinhas próprias de farmácia também, como o já famoso ‘Puta que Eparil’. Eparil pros leigos é um tubinho com um liquidinho pro fígado. Tem sempre uns cachaceiro que compram de dúzia.
Tem coisas que eu conto e ninguém acredita. Ontem por exemplo ganhei um chocotone Bauducco, mermão. Tudo bem que eu gosto muito de panetone dos baratos, mas ô, é mór bom o chocotone. Ainda assim, dado. Que será que se passa na cabeça das japonesinhas pra me dar um troço que custa deiz real? Eu tava acostumado com o realzinho da dona Aurora.
E semana passada que eu descobri que o Ricardo anda aprendendo Aramaico. É verdade, caro leitor. A descoberta se deu quando conversava eu com o ‘Marião’, o vendedor churrasqueiro tomador de Eparil, e de repente Ricardo diz: “Ô Wiliam, Kiqueci Icsiziniaqui ?
Silêncio.
Ricardo pega o remédio e ergue.
‘Hixizine’.
Descobrimos então que aquele jovem na verdade estava querendo pronunciar “O que que é esse Hixizine aqui”.
Ah, e estamos em processo de elaboração do novo slogan. A minha proposta é: “Se quiser de analgésico, fale com o Wiliam. Precisando de anti-térmico, converse com o Ricardo; Se precisar de um Efervescente, fala com o Jorginho que ele resolve o teu lance”.
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