Eu me
lembro que no primeiro dia de aula no curso de Letras tinha um teatro sendo
encenado e uma das personagens gritava loucamente “Kibe com coalhada é bom!
Kibe com coalhada é bom!”. É com uma obsessão semelhante que se tem defendido a
grandeza do funk da Valesca Popozuda, como se gritassem desesperadamente “Valesca
Popozuda é cultura! Bejinho no ombro é feminismo!”. Apesar de ser legítima a
repulsa pelo mainardismo cultural que despreza tudo que não é erudito ou que
venha da periferia, existe um evidente relativismo na defesa do significado da
música e das posições da Valesca Popozuda.
A polêmica sobre
a tal prova em que o professor citava Bejinho no ombro reacendeu a discórdia.
O referido professor diz que usou a funkeira pra discutir a formação de valores
na sociedade, o que seria pedagogicamente muito apropriado. Mas se de fato ele
o fez, não justifica ter colocado na prova algo que não passava de um “complete
a sentença”, uma avaliação que se pauta pela memorização e não continha Nenhuma
reflexão. Se a filosofia do tal professor preza pela criticidade em aula, mas
na avaliação cobra decoreba, péssima pedagogia a dele. O fato é que o professor
afirmou que Valesca é uma grande pensadora, causou polêmica e foi defendido
desesperadamente por quem joga fora os critérios ao fazer a crítica do
pedantismo da elite que acha que o funk de Valesca Popozuda é sub-cultura.
A condição
de vadia, defendida afirmativa e combativamente pelos movimentos feministas
diante da criminalização da liberdade feminina, é reivindicada como legítima
desconstrução da passividade das mulheres: é preciso se afirmar vadia, querer
ser vadia e ser respeitada integralmente por isso. A absurdez da culpabilização
das vítimas de estupro pela moral conservadora não poderia ser enfrentada de
modo menos radical. Tal contexto de afirmação e negação não poderia ser isento
de incoerências e exageros, seria um preciosismo idealista exigir
uma conduta incorrigível de qualquer manifestação contra-hegemônica, tal como a
do feminismo que enfrenta todo tipo de violência. Porém, se há um exagero nesse
cenário, certamente um deles é o significado que a Valesca Popozuda adquiriu,
tomada como mártir do feminismo no funk. Trata-se de um evidente fetichismo da
contracultura, pois se atribui um sentido à postura e à música de Valesca que
ela não tem. Claro que dirão que a interpretação da arte é livre, etc., mas admitindo
que a significação de uma obra de arte não é infinita, mas abarca um conjunto
possível de interpretações, e sobretudo, considerando o contexto e o lugar
social onde a arte é produzida, o funk da Valesca tem muito menos do que se tem
projetado subjetivistamente nele.
Bejinho no
ombro é um bom exemplo. O mais recente sucesso da ex-gaiola das popozudas, bejinho
no ombro faz referência a tiro, porrada e bomba, o que entusiasma qualquer
pessoa que vê em Valesca uma feminista combativa e sofisticada, uma Beauvoir
carioca. Mas os tiros, porradas e bombas não são endereçadas senão às
“inimigas”, suas interlocutoras na música e muito peculiares ao universo do
funk. A letra sugere um espírito bastante bairrista, uma disputa entre as aliadas
e as inimigas, recalcadas. O sentido da letra caminha muito mais para a
explicitação de mesquinhas antipatias entre mulheres do que à afirmação da
igualdade de gênero.
A
referência às inimigas, no feminino, é emblemática. A posição reivindicada de
vadia, cantada por Valesca na Gaiola das popozudas (“eu passava, tu não dava
valor, agora que eu sou puta você quer falar de amor”), em bejinho no ombro
aparece na referência às inimigas, classificadas como cachorras, pois Valesca
faz de Deus o seu escudo e não pode mais ouvir o latido de suas inimigas
cachorras. Como se sabe, cachorra é sinônimo de vadia no funk machista,
supostamente desconstruído e superado por Valesca. Como se vê, ela não está
liberta da mesquinha relação poderosas x inimigas, tão própria do funk de Anitta,
a funkeira meiga que fez plástica no nariz e que publicamente afirma seu
distanciamento do funk feito no morro. A mensagem de Anitta e do seu Show das
poderosas não é diferente da mensagem de Bejinho no ombro, em ambos se trata
da afirmação das poderosas contra as invejosas. Claro que Valesca não se reduz a
Bejinho no ombro, mas é decisivamente um exagero ver no seu funk um feminismo
libertador. A mesquinhez da moralidade burguesa e seu desprezo pela música
feita na periferia não transforma Valesca Popozuda em mártir das questões de
gênero. O fato de muitos moralistas terem se indignado contra o professor que
colocou Valesca como “grande pensadora”, o que de fato ela não é, não torna seu
funk isento dos ranços presentes no funk machista do qual ela é crítica.
Afinal, poderosas e inimigas não são, ambas, vítimas do estigma que reduz
cachorras, popozudas e preparadas a objeto sexual? O bejinho no ombro é um
gesto de desprezo (“do Camarote quase não dá pra te ver”) pro
recalque passar longe, e os tiros, porradas e bombas não são para a opressão ou
para o machismo, mas para as piriguetes (“o meu sensor de piriguete explodiu”).
Mas qual o
problema de Valesca demonstrar todas as suas antipatias contra as inimigas,
piriguetes e cachorras? Nenhum, ora, qual de nós não desejamos o mesmo para
nossas inimigas? O problema é projetar em Valesca os desejos por um funk
engajado e libertador, por uma cultura da periferia que denuncie o machismo e
que desconstrua o idealista perfil da erudição da cultura e do moralismo
burgueses. Valesca não é uma funkeira feminista no sentido forte do termo e
está longe de ser referência de contracultura, mas abriu o caminho pra essa
possibilidade. A questão é que não se pode fazer de seu funk e de sua arte o
poço dos desejos por um funk libertador e crítico, insistir nisso é fazer o
relativismo de escudo ou ser extremamente imaginativo.