Valesca e o fetichismo da contracultura de plantão

domingo, 13 de abril de 2014



Eu me lembro que no primeiro dia de aula no curso de Letras tinha um teatro sendo encenado e uma das personagens gritava loucamente “Kibe com coalhada é bom! Kibe com coalhada é bom!”. É com uma obsessão semelhante que se tem defendido a grandeza do funk da Valesca Popozuda, como se gritassem desesperadamente “Valesca Popozuda é cultura! Bejinho no ombro é feminismo!”. Apesar de ser legítima a repulsa pelo mainardismo cultural que despreza tudo que não é erudito ou que venha da periferia, existe um evidente relativismo na defesa do significado da música e das posições da Valesca Popozuda.

A polêmica sobre a tal prova em que o professor citava Bejinho no ombro reacendeu a discórdia. O referido professor diz que usou a funkeira pra discutir a formação de valores na sociedade, o que seria pedagogicamente muito apropriado. Mas se de fato ele o fez, não justifica ter colocado na prova algo que não passava de um “complete a sentença”, uma avaliação que se pauta pela memorização e não continha Nenhuma reflexão. Se a filosofia do tal professor preza pela criticidade em aula, mas na avaliação cobra decoreba, péssima pedagogia a dele. O fato é que o professor afirmou que Valesca é uma grande pensadora, causou polêmica e foi defendido desesperadamente por quem joga fora os critérios ao fazer a crítica do pedantismo da elite que acha que o funk de Valesca Popozuda é sub-cultura.
A condição de vadia, defendida afirmativa e combativamente pelos movimentos feministas diante da criminalização da liberdade feminina, é reivindicada como legítima desconstrução da passividade das mulheres: é preciso se afirmar vadia, querer ser vadia e ser respeitada integralmente por isso. A absurdez da culpabilização das vítimas de estupro pela moral conservadora não poderia ser enfrentada de modo menos radical. Tal contexto de afirmação e negação não poderia ser isento de incoerências e exageros, seria um preciosismo idealista exigir uma conduta incorrigível de qualquer manifestação contra-hegemônica, tal como a do feminismo que enfrenta todo tipo de violência. Porém, se há um exagero nesse cenário, certamente um deles é o significado que a Valesca Popozuda adquiriu, tomada como mártir do feminismo no funk. Trata-se de um evidente fetichismo da contracultura, pois se atribui um sentido à postura e à música de Valesca que ela não tem. Claro que dirão que a interpretação da arte é livre, etc., mas admitindo que a significação de uma obra de arte não é infinita, mas abarca um conjunto possível de interpretações, e sobretudo, considerando o contexto e o lugar social onde a arte é produzida, o funk da Valesca tem muito menos do que se tem projetado subjetivistamente nele.
Bejinho no ombro é um bom exemplo. O mais recente sucesso da ex-gaiola das popozudas, bejinho no ombro faz referência a tiro, porrada e bomba, o que entusiasma qualquer pessoa que vê em Valesca uma feminista combativa e sofisticada, uma Beauvoir carioca. Mas os tiros, porradas e bombas não são endereçadas senão às “inimigas”, suas interlocutoras na música e muito peculiares ao universo do funk. A letra sugere um espírito bastante bairrista, uma disputa entre as aliadas e as inimigas, recalcadas. O sentido da letra caminha muito mais para a explicitação de mesquinhas antipatias entre mulheres do que à afirmação da igualdade de gênero.
A referência às inimigas, no feminino, é emblemática. A posição reivindicada de vadia, cantada por Valesca na Gaiola das popozudas (“eu passava, tu não dava valor, agora que eu sou puta você quer falar de amor”), em bejinho no ombro aparece na referência às inimigas, classificadas como cachorras, pois Valesca faz de Deus o seu escudo e não pode mais ouvir o latido de suas inimigas cachorras. Como se sabe, cachorra é sinônimo de vadia no funk machista, supostamente desconstruído e superado por Valesca. Como se vê, ela não está liberta da mesquinha relação poderosas x inimigas, tão própria do funk de Anitta, a funkeira meiga que fez plástica no nariz e que publicamente afirma seu distanciamento do funk feito no morro. A mensagem de Anitta e do seu Show das poderosas não é diferente da mensagem de Bejinho no ombro, em ambos se trata da afirmação das poderosas contra as invejosas. Claro que Valesca não se reduz a Bejinho no ombro, mas é decisivamente um exagero ver no seu funk um feminismo libertador. A mesquinhez da moralidade burguesa e seu desprezo pela música feita na periferia não transforma Valesca Popozuda em mártir das questões de gênero. O fato de muitos moralistas terem se indignado contra o professor que colocou Valesca como “grande pensadora”, o que de fato ela não é, não torna seu funk isento dos ranços presentes no funk machista do qual ela é crítica. Afinal, poderosas e inimigas não são, ambas, vítimas do estigma que reduz cachorras, popozudas e preparadas a objeto sexual? O bejinho no ombro é um gesto de desprezo (“do Camarote quase não dá pra te ver”) pro recalque passar longe, e os tiros, porradas e bombas não são para a opressão ou para o machismo, mas para as piriguetes (“o meu sensor de piriguete explodiu”).
Mas qual o problema de Valesca demonstrar todas as suas antipatias contra as inimigas, piriguetes e cachorras? Nenhum, ora, qual de nós não desejamos o mesmo para nossas inimigas? O problema é projetar em Valesca os desejos por um funk engajado e libertador, por uma cultura da periferia que denuncie o machismo e que desconstrua o idealista perfil da erudição da cultura e do moralismo burgueses. Valesca não é uma funkeira feminista no sentido forte do termo e está longe de ser referência de contracultura, mas abriu o caminho pra essa possibilidade. A questão é que não se pode fazer de seu funk e de sua arte o poço dos desejos por um funk libertador e crítico, insistir nisso é fazer o relativismo de escudo ou ser extremamente imaginativo.

A dialética da aparência e essência em Laerte e Ney Matogrosso

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014



Como a complexa peculiaridade das diversidades sexuais está além do que supõe a nossa vã filosofia. Do ponto de vista da norma heterossexual masculina branca e burguesa é certamente difícil entender, por exemplo, o Laerte. Eu disse um tempo atrás que ele já não é mais cartunista, sua nova profissão é dar palestras e entrevistas explicando o que ele é afinal de contas. Um homem, que tem uma namorada, se veste de mulher, se porta como mulher, assumiu uma outra identidade de gênero, militante inclusive, mas sem interferir necessariamente na sua orientação sexual, o que é extremamente improvável. Se a vida imita a arte, nela também o improvável é imprescindível.
Há que se confessar sem desrespeito pela atitude do Laerte e de tantas outras que se trata de algo de tal modo singular que causa estranheza, e a estranheza em muitos gera o preconceito e do preconceito se vai à intolerância e desta à violência. Compreender o Laerte e a transgenericidade é, por isso, imprescindível. Talvez não haja um sujeito no qual a dialética da aparência e essência é tão complexa quanto nele. Não se trata de se espantar no sentido do pudor, afinal normativizar identidades sociais não é saudável em nenhum sentido, mas é preciso que a estranheza faça refletir sobre essas peculiaridades, pois elas não são naturais ou espontâneas, são socialmente construídas. Da mesma forma, o preconceito deve ser desconstruído concretamente, situando sujeitos reais em práticas sociais reais, e não abstratamente com discursos vagos e clericais como É preciso aceitar o diferente, É preciso aceitar o outro. Esse é o conceito de cidadania, aliás, uma igualdade abstrata. É preciso aceitar a diversidade porque a normatividade foi construída a partir de determinações históricas e sociais concretas, de uma sociedade capitalista que se pauta por uma falsa universalidade, que é a universalidade particular, de uma classe burguesa, falsa por que é particular que se pretende universal, com interesses econômicos universais, uma religião universal, um padrão estético universal, uma sexualidade universal. Falsa universalidade, portanto.
Fenômeno muito peculiar também ocorre com o nosso Fred Mercury brasileiro, aquele tiozão firmeza que a gente não teve, mas gostaria de ter, o Ney Matogrosso. Quem vê o Ney sem maquiagem, sem lápis no olho, dando entrevista, pode ter certeza de que ele poderia ser tranquilamente um tio de algum amigo seu, daqueles bem tradicionais, que afirmam Menino eu sou é homem, E COMO SOU. Aparência muito da heterossexual tem esse Ney Matogrosso, mas se a aparência coincidisse sempre com a essência seria desnecessária qualquer ciência, já dizia o Marx, afinal de contas, o sol passa em cima das nossas cabeças todos os dias, supostamente. E como é improvável o Ney Matogrosso, daí sua peculiaridade e seu valor.
Acho (e meu conhecimento sobre esse tema não ultrapassa meia dúzia de achismos, mas é preciso compreender essa questão profundamente e não apenas “lançar um olhar possível” sobre ela) que o Laerte e o Ney Matogrosso expressam na diversidade sexual e de gênero o quão é peculiar e heterogênea a configuração do ser social no que se refere à personalidade. Eles são expressão de que aparência e essência não são sempre e necessariamente antagônicos, o que seria lógica formal, tampouco a aparência sempre coincide com a essência. Nunca é demais dizer que a categoria amaldiçoada da essência não é a Natureza Eterna e Imutável das pessoas ou dos complexos sociais. Para a lógica dialética, essência são as determinações essenciais, aquilo que caracteriza fundamentalmente algo durante um momento histórico, afinal de contas a sociedade não é um amontoado de fenômenos efêmeros e fugazes que de uma hora para outra são outra coisa, como pretende vastas maiorias dos intelectuais pós-modernos. Não é porque Rousseau achava a Natureza do ser humano é boa que não exista essência humana, historicamente construída, que pode ser transformada, porém não de uma hora pra outra, sem conflitos e contradições sociais, de maneira fugaz e etérea. Se fosse verdade que não há uma relação complexa entre essência e aparência porque não existe essência, nós somos o que parecemos ser e podemos ser algo rigorosamente diferente disso amanhã de manhã. Isso é falso, pois como já sabia Renato Russo, “não é a vida como está, e sim as coisas como são”. Existe ainda uma dialética entre determinações essenciais e determinações históricas na processualidade do ser social que não cabe aqui, sobretudo porque ainda não coube na minha cabeça.
Por tudo isso há algo efetivamente importante pra se dizer sobre a peculiaridade do Laerte e do Ney, que é a heterogeneidade do social. Há quem diga que a diversidade sexual é de tal modo heterogênea que não é passível de compreensão, por isso não seria preciso categorias como lésbicas, gays, travestis, transgêneros, etc. Essa concepção repousa justamente na idéia de que não há uma essência, determinações essenciais na atividade dos gays, ou das lésbicas, ou das travestis, tanto é assim que elas podem acordar com vontade de ser outra coisa, completamente distinta, e sê-las kafkianamente, tal como Gregor dormiu uma coisa e acordou outra.
Analisando um pouco mais profundamente (o pós-modernismo dirá que isso é uma pretensão arrogante), isso implica em que apenas o que é socialmente homogêneo, apenas o que é isento de contradições é que é possível conhecer, o que é uma posição fundamentalmente irracionalista. Mas como o irracionalismo pós-moderno não pretende conhecer muita coisa além do olhar subjetivo de cada qual sobre a realidade que se reinventa, isso não é um problema para ele. De um ponto de vista crítico radical (e se não der conta de ser radicalmente crítico é preciso ter a pretensão de ser) é preciso sim conhecer as especificidades das práticas das mais diversas orientações sexuais, sua essencialidade, não anti-dialeticamente, não para colocá-los em caixinhas a-históricas, não para catalogá-los, porque eles podem sim, mediados por sua prática social, construir-se com uma outra orientação sexual ou de gênero, porém sempre de modo mediado, nunca imediata e fugazmente. Não se combate o machismo, a exploração de classe, a homofobia e a heteronormatividade sem localizá-los na totalidade social, nas determinações essenciais da sociedade capitalista e em relação com as outras bandeiras de lutas, porque o corporativismo de alguns movimentos sociais advém fundamentalmente da falta de conhecimento da totalidade, que cartesianamente separa demandas de gênero, de orientação sexual, étnico-raciais e de classe. Se eu nunca vi rastro de cobra nem couro de lobisomem, não quer dizer que eles não existam objetivamente.

Dialética do desquerer

domingo, 17 de junho de 2012

   A coisa da dialética é basicamente a noção de que tudo tem contradições. Mas isto implica em que, diretamente? Pra ser sucinto, implica que nada é absoluto.
   Tranquilo usar a dialética para as ciências sociais, para as ciências da educação, para as ciências humanas em geral. Mas e usar a dialética pra pautar os problemas da nossa vida? Ou ainda: dá pra tentar resolver com desquerer problemas que versam sobre algo de bonitês que se sente por outra pessoa? Essas linhas são sobre a importância da dialética do desquerer para entender as coisas acerca do querer.
   De um ponto de vista dialético, todo bem-querer implica um mal-querer. Tudo bem, nós podemos enxergar plenárias inteiras, ululantes, concordando com isso. O problema é definir qual é natureza da relação que o bem-querer estabelece com o mal-querer e em que medida cada um deles se coloca nessa relação. Há mais equilíbrio ou mais tensão? Mais leveza ou mais nóia? Ter clareza disso é importante, pois quando a linha do equilíbrio começa a se romper o mal-querer se torna mais freqüente do que é desejável. E é aí que entra a dialética do desquerer.
   Quando o caso começa a ficar mal-resolvido demais uma coisa se torna decisiva: desquerer. Ah, o desquerer é fundamental. Ele é precisamente a superação dialética entre o bem-querer e o mal-querer.
   Pode soar maniqueísta, mas bem-querer e mal-querer existem de fato nas mais singulares atitudes das diversas relações humanas. Evidente que o desquerer não é neutro, ele é plenamente passível de valoração. Geralmente para quem não enxerga a presença cada vez mais latente do mal-querer o desquerer não agrada nem um pouco. O fato é que em determinados momentos o desquerer se torna fundamental. Ele se coloca como possibilidade real de superação quando existe uma falsa escolha entre o bem-querer e o mal-querer. Em outras palavras: quando não há mais um Nós autêntico entre duas pessoas, ainda que quase sempre uma delas insista em não enxergar isso, o desquerer é uma opção saudável. Desquerer não é necessariamente abdicar de bem-querer alguém, tampouco uma opção pelo mal-querer. Ele é uma alternativa a isso.
   Assim, se algo está insustentável é muito melhor desquerer do que manter um malfadado bem-querer e permitir um muito provável mal-querer que se aproxima.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Tudo o que fiz foi tentar acabar com tudo que pudesse me lembrar você. Inclusive destruir os espelhos de casa. Até quando olhava para mim mesmo eu via você por fora e por dentro e por tudo. Tudo o que fiz foi acabar com tudo que me lembrava você. Quando na verdade ah não droga merda eu não acredito que merda que merdaquemerdaquemeiewrda veja não sei como não sei mesmo como na verdade eu ainda merda. (Gabriel Pardal)

Desquentrou preronautica

sábado, 12 de maio de 2012

Foto minha, texto da Bruna Beber, som do Wado, melancolia do sábado.

Religando

sexta-feira, 2 de março de 2012

A gente não precisa de um salário
Um débito automático todo dia 25
Ou um décimo terceiro fundo de garantia
A gente precisa só e precisa mesmo é de um interlocutor.
Pode ser um C3, um sms, 140 caracteres, um gato ou alguém de verdade
Dessas com cheiros, clichês e rituais.

Já pensei em ir de vez, ir de vez, já pensei.
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