Como
a complexa peculiaridade das diversidades sexuais está além do que supõe a
nossa vã filosofia. Do ponto de vista da norma heterossexual masculina branca e
burguesa é certamente difícil entender, por exemplo, o Laerte. Eu disse um
tempo atrás que ele já não é mais cartunista, sua nova profissão é dar
palestras e entrevistas explicando o que ele é afinal de contas. Um homem, que
tem uma namorada, se veste de mulher, se porta como mulher, assumiu uma outra
identidade de gênero, militante inclusive, mas sem interferir necessariamente
na sua orientação sexual, o que é extremamente improvável. Se a vida imita a
arte, nela também o improvável é imprescindível.
Há
que se confessar sem desrespeito pela atitude do Laerte e de tantas outras que
se trata de algo de tal modo singular que causa estranheza, e a estranheza em
muitos gera o preconceito e do preconceito se vai à intolerância e desta à
violência. Compreender o Laerte e a transgenericidade é, por isso,
imprescindível. Talvez não haja um sujeito no qual a dialética da aparência e
essência é tão complexa quanto nele. Não se trata de se espantar no sentido do
pudor, afinal normativizar identidades sociais não é saudável em nenhum
sentido, mas é preciso que a estranheza faça refletir sobre essas
peculiaridades, pois elas não são naturais ou espontâneas, são socialmente
construídas. Da mesma forma, o preconceito deve ser desconstruído
concretamente, situando sujeitos reais em práticas sociais reais, e não
abstratamente com discursos vagos e clericais como É preciso aceitar o
diferente, É preciso aceitar o outro. Esse é o conceito de cidadania, aliás,
uma igualdade abstrata. É preciso aceitar a diversidade porque a normatividade
foi construída a partir de determinações históricas e sociais concretas, de uma
sociedade capitalista que se pauta por uma falsa universalidade, que é a
universalidade particular, de uma classe burguesa, falsa por que é particular que
se pretende universal, com interesses econômicos universais, uma religião
universal, um padrão estético universal, uma sexualidade universal. Falsa
universalidade, portanto.
Fenômeno
muito peculiar também ocorre com o nosso Fred Mercury brasileiro, aquele tiozão
firmeza que a gente não teve, mas gostaria de ter, o Ney Matogrosso. Quem vê o
Ney sem maquiagem, sem lápis no olho, dando entrevista, pode ter certeza de que
ele poderia ser tranquilamente um tio de algum amigo seu, daqueles bem
tradicionais, que afirmam Menino eu sou é homem, E COMO SOU. Aparência muito da
heterossexual tem esse Ney Matogrosso, mas se a aparência coincidisse sempre
com a essência seria desnecessária qualquer ciência, já dizia o Marx, afinal de
contas, o sol passa em cima das nossas cabeças todos os dias, supostamente. E
como é improvável o Ney Matogrosso, daí sua peculiaridade e seu valor.
Acho
(e meu conhecimento sobre esse tema não ultrapassa meia dúzia de achismos, mas é
preciso compreender essa questão profundamente e não apenas “lançar um olhar
possível” sobre ela) que o Laerte e o Ney Matogrosso expressam na diversidade
sexual e de gênero o quão é peculiar e heterogênea a configuração do ser social
no que se refere à personalidade. Eles são expressão de que aparência e
essência não são sempre e necessariamente antagônicos, o que seria lógica
formal, tampouco a aparência sempre coincide com a essência. Nunca é demais
dizer que a categoria amaldiçoada da essência não é a Natureza Eterna e
Imutável das pessoas ou dos complexos sociais. Para a lógica dialética, essência
são as determinações essenciais, aquilo que caracteriza fundamentalmente algo
durante um momento histórico, afinal de contas a sociedade não é um amontoado
de fenômenos efêmeros e fugazes que de uma hora para outra são outra coisa,
como pretende vastas maiorias dos intelectuais pós-modernos. Não é porque
Rousseau achava a Natureza do ser humano é boa que não exista essência humana,
historicamente construída, que pode ser transformada, porém não de uma hora pra
outra, sem conflitos e contradições sociais, de maneira fugaz e etérea. Se
fosse verdade que não há uma relação complexa entre essência e aparência porque
não existe essência, nós somos o que parecemos ser e podemos ser algo
rigorosamente diferente disso amanhã de manhã. Isso é falso, pois como já sabia
Renato Russo, “não é a vida como está, e sim as coisas como são”. Existe ainda
uma dialética entre determinações essenciais e determinações históricas na
processualidade do ser social que não cabe aqui, sobretudo porque ainda não
coube na minha cabeça.
Por
tudo isso há algo efetivamente importante pra se dizer sobre a peculiaridade do
Laerte e do Ney, que é a heterogeneidade do social. Há quem diga que a
diversidade sexual é de tal modo heterogênea que não é passível de compreensão,
por isso não seria preciso categorias como lésbicas, gays, travestis,
transgêneros, etc. Essa concepção repousa justamente na idéia de que não há uma
essência, determinações essenciais na atividade dos gays, ou das lésbicas, ou
das travestis, tanto é assim que elas podem acordar com vontade de ser outra
coisa, completamente distinta, e sê-las kafkianamente, tal como Gregor dormiu uma
coisa e acordou outra.
Analisando
um pouco mais profundamente (o pós-modernismo dirá que isso é uma pretensão
arrogante), isso implica em que apenas o que é socialmente homogêneo, apenas o
que é isento de contradições é que é possível conhecer, o que é uma posição
fundamentalmente irracionalista. Mas como o irracionalismo pós-moderno não
pretende conhecer muita coisa além do olhar subjetivo de cada qual sobre a
realidade que se reinventa, isso não é um problema para ele. De um ponto de
vista crítico radical (e se não der conta de ser radicalmente crítico é preciso
ter a pretensão de ser) é preciso sim conhecer as especificidades das práticas
das mais diversas orientações sexuais, sua essencialidade, não
anti-dialeticamente, não para colocá-los em caixinhas a-históricas, não para
catalogá-los, porque eles podem sim, mediados por sua prática social,
construir-se com uma outra orientação sexual ou de gênero, porém sempre de modo
mediado, nunca imediata e fugazmente. Não se combate o machismo, a exploração
de classe, a homofobia e a heteronormatividade sem localizá-los na totalidade
social, nas determinações essenciais da sociedade capitalista e em relação com
as outras bandeiras de lutas, porque o corporativismo de alguns movimentos
sociais advém fundamentalmente da falta de conhecimento da totalidade, que
cartesianamente separa demandas de gênero, de orientação sexual, étnico-raciais
e de classe. Se eu nunca vi rastro de cobra nem couro de lobisomem, não quer
dizer que eles não existam objetivamente.
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