Hoje fui trabalhar no ENADE, o Exame Nacional que supostamente mensura o Desempenho dos Estudantes. Só pude colocar aquele adesivinho branco escrito FISCALIZAÇÃO na camiseta porque a Janis me arrumou esse bico e salvou o meu mês. É, meu caro, a Mayara tem tias impagáveis. Aliás ela paga muito bem; desculpem, não faço mais trocadilhos.
Eu particularmente faço esse tipo de prova desde meus dez anos. Não é precocidade minha não, desde a quarta série minha irmã me mandava ir fazer os vestibulinhos das escolas particulares. Lembro até hoje que quando tava na quarta série eu fiz o do Interativo, do Fênix e do Liceu, e meu nome saiu no jornal, na listinha dos cem primeiros acho [até a quarta série eu fui um dos melhores da sala]. Daí pra frente enfrentar uma sala de aula e um caderno de questões e outro de respostas já era parte da minha personalidade. Sendo assim, me era muito familiar a figura do fiscal de sala, aquele cara que te diz que hora começa, que hora termina, preenche o quadradinho inteiro, esfereográfica azul ou preta, o resultado no site amanhã depois das dez. Hoje eu fui o fiscal de sala.
A sala que eu e minha companheira ficamos foi do pessoal de arquitetura, que segundo disseram, iriam boicotar a prova. Não boicotaram. Da nossa sala, de trinta alunos apenas uma faltou. Uns cinco deixaram de responder, com especialidade pra um rapaz de havaianas, bermuda, cabelos revolucionários, e uma incrível habilidade pra desenhar smiles onde deveriam haver croquis.
Logo no começo da prova ele lendo o caderno começou a rir, o que contagiou imediatamente seu vizinho. "Os caras tão zuano". A moça que estava comigo e eu fizemos cara de muito maus e os dois rapazes continuaram a ler silenciosamente como o resto dos unipeanos concentrados da sala.
Teve uma hora que ele começou escrever, e eu pensei com o meu crachá, 'esse cara tá escrevendo abobrinha, certeza.' Estava. No fim da prova fui conferir o caderno dele e estava escrito mais ou menos assim: "Prezados senhores, não acredito que mecanismos meramente quantitativos possam diagnosticar as vicissitudes do nosso sistema educacional. Prefiro não participar desse espetáculo. Uma boa tarde a todos." Em outras palavras ele quis dizer: "Ser avaliado pelo MEC não faz parte do meu show". Ou então "Ei, Haddad, vai tomá no cu".
Quando ele entrou na sala já se percebeu que tinha uma personalidade um tanto quanto espetaculosa. A primeira coisa que ele fez depois de me entregar o RG foi perguntar se podia sair pra fumar. !
O cara vai fazer o ENADE e quer fumar. de fato a minha parceira precisou chamar o fiscal volante pra levar a criança fumar.
O legal disso tudo é que só se pode perceber todo esse movimento estando do lado de cá da carteira. O olhar do fiscal pros alunos não é imparcial como eu vestibulando imaginava. Aliás não imaginava. O fiscal é uma figura neutra, sem caráter, sem personalidade, sem juízo de valor. Ledo engano. Mal sabe o arquiteto transeunte as vicissitudes as quais estava exposto.
Não digo isso por mim, mas pela moça que ficou comigo. A certa altura antes de se abrir o portão, ela me fala "num sei que lá puta que pariu". Pensava comigo que jamais aquela pessoa fosse dizer puta que pariu na vida. Mais uns três minutos e ela contando alguma história "e num é que a filha da puta...". A descoberta de que aquela criatura fazia uso de palavrões me deixou mais tranquilo para lhe explicar a diferença entre os bebedouros.
"Tem o bebedouro Filho da puta e o Puta que pariu. O filho da puta é aquele que ce tem que chegá bem pertinho por que quase não sai água. O Puta que pariu ce aperta e, Puta que pariu!"
Mas o que mais me deixou intrigado [tiozíssimo essa palavra] foi a observação dela para com um rapaz que estava na última cadeira da fila do meio. "Ó aquele cara. É, o de óculos, encostado na parede. Tem uma cáaara de viado. Se não for viado tem vontade de ser."
Fiquei eu pensando comigo a maldade que fora o comentário singular de minha parceira. Imagine você a situação de um camarada que não é viado, mas tem vontade de ser. Tipo, quero ser gay, mas vou fingir que não. Como que é isso? É o famoso bicha enrustida?
Ás vezes eu me assusto com a maldade dos comentários das pessoas. Eu que deveria ter um paradigma de tolerância inabalável, confesso que algumas coisas me parecem viadagem, não vou ser hipócrita. Eu sou pela tolerância mas tem coisas que abalam meus conceitos. Mas o interessante é a necessidade que as pessoas têm de afirmar a viadagem alheia.
Quem nunca ouviu coisas do tipo "Ah fulano é viado"
"Ah mas ele é casado, tem filho"
"E daí?! Só porque tem filho? Certeza que queima a rosca. Tem mó cara de quem morde a fronha".
Quer dizer, nem que o cara seja casado e tenha filhos, o que supostamente atestaria sua fidedignidade hetero, a vontade das pessoas de que ele seja viado supera até sua posição de chefe de família.
Até o ENADE que vem pessoas.
Espero que no próximo eu continue sendo o cara que diz tchau thau pras arquitetas de havaiana.
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