A dialética da aparência e essência em Laerte e Ney Matogrosso

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014



Como a complexa peculiaridade das diversidades sexuais está além do que supõe a nossa vã filosofia. Do ponto de vista da norma heterossexual masculina branca e burguesa é certamente difícil entender, por exemplo, o Laerte. Eu disse um tempo atrás que ele já não é mais cartunista, sua nova profissão é dar palestras e entrevistas explicando o que ele é afinal de contas. Um homem, que tem uma namorada, se veste de mulher, se porta como mulher, assumiu uma outra identidade de gênero, militante inclusive, mas sem interferir necessariamente na sua orientação sexual, o que é extremamente improvável. Se a vida imita a arte, nela também o improvável é imprescindível.
Há que se confessar sem desrespeito pela atitude do Laerte e de tantas outras que se trata de algo de tal modo singular que causa estranheza, e a estranheza em muitos gera o preconceito e do preconceito se vai à intolerância e desta à violência. Compreender o Laerte e a transgenericidade é, por isso, imprescindível. Talvez não haja um sujeito no qual a dialética da aparência e essência é tão complexa quanto nele. Não se trata de se espantar no sentido do pudor, afinal normativizar identidades sociais não é saudável em nenhum sentido, mas é preciso que a estranheza faça refletir sobre essas peculiaridades, pois elas não são naturais ou espontâneas, são socialmente construídas. Da mesma forma, o preconceito deve ser desconstruído concretamente, situando sujeitos reais em práticas sociais reais, e não abstratamente com discursos vagos e clericais como É preciso aceitar o diferente, É preciso aceitar o outro. Esse é o conceito de cidadania, aliás, uma igualdade abstrata. É preciso aceitar a diversidade porque a normatividade foi construída a partir de determinações históricas e sociais concretas, de uma sociedade capitalista que se pauta por uma falsa universalidade, que é a universalidade particular, de uma classe burguesa, falsa por que é particular que se pretende universal, com interesses econômicos universais, uma religião universal, um padrão estético universal, uma sexualidade universal. Falsa universalidade, portanto.
Fenômeno muito peculiar também ocorre com o nosso Fred Mercury brasileiro, aquele tiozão firmeza que a gente não teve, mas gostaria de ter, o Ney Matogrosso. Quem vê o Ney sem maquiagem, sem lápis no olho, dando entrevista, pode ter certeza de que ele poderia ser tranquilamente um tio de algum amigo seu, daqueles bem tradicionais, que afirmam Menino eu sou é homem, E COMO SOU. Aparência muito da heterossexual tem esse Ney Matogrosso, mas se a aparência coincidisse sempre com a essência seria desnecessária qualquer ciência, já dizia o Marx, afinal de contas, o sol passa em cima das nossas cabeças todos os dias, supostamente. E como é improvável o Ney Matogrosso, daí sua peculiaridade e seu valor.
Acho (e meu conhecimento sobre esse tema não ultrapassa meia dúzia de achismos, mas é preciso compreender essa questão profundamente e não apenas “lançar um olhar possível” sobre ela) que o Laerte e o Ney Matogrosso expressam na diversidade sexual e de gênero o quão é peculiar e heterogênea a configuração do ser social no que se refere à personalidade. Eles são expressão de que aparência e essência não são sempre e necessariamente antagônicos, o que seria lógica formal, tampouco a aparência sempre coincide com a essência. Nunca é demais dizer que a categoria amaldiçoada da essência não é a Natureza Eterna e Imutável das pessoas ou dos complexos sociais. Para a lógica dialética, essência são as determinações essenciais, aquilo que caracteriza fundamentalmente algo durante um momento histórico, afinal de contas a sociedade não é um amontoado de fenômenos efêmeros e fugazes que de uma hora para outra são outra coisa, como pretende vastas maiorias dos intelectuais pós-modernos. Não é porque Rousseau achava a Natureza do ser humano é boa que não exista essência humana, historicamente construída, que pode ser transformada, porém não de uma hora pra outra, sem conflitos e contradições sociais, de maneira fugaz e etérea. Se fosse verdade que não há uma relação complexa entre essência e aparência porque não existe essência, nós somos o que parecemos ser e podemos ser algo rigorosamente diferente disso amanhã de manhã. Isso é falso, pois como já sabia Renato Russo, “não é a vida como está, e sim as coisas como são”. Existe ainda uma dialética entre determinações essenciais e determinações históricas na processualidade do ser social que não cabe aqui, sobretudo porque ainda não coube na minha cabeça.
Por tudo isso há algo efetivamente importante pra se dizer sobre a peculiaridade do Laerte e do Ney, que é a heterogeneidade do social. Há quem diga que a diversidade sexual é de tal modo heterogênea que não é passível de compreensão, por isso não seria preciso categorias como lésbicas, gays, travestis, transgêneros, etc. Essa concepção repousa justamente na idéia de que não há uma essência, determinações essenciais na atividade dos gays, ou das lésbicas, ou das travestis, tanto é assim que elas podem acordar com vontade de ser outra coisa, completamente distinta, e sê-las kafkianamente, tal como Gregor dormiu uma coisa e acordou outra.
Analisando um pouco mais profundamente (o pós-modernismo dirá que isso é uma pretensão arrogante), isso implica em que apenas o que é socialmente homogêneo, apenas o que é isento de contradições é que é possível conhecer, o que é uma posição fundamentalmente irracionalista. Mas como o irracionalismo pós-moderno não pretende conhecer muita coisa além do olhar subjetivo de cada qual sobre a realidade que se reinventa, isso não é um problema para ele. De um ponto de vista crítico radical (e se não der conta de ser radicalmente crítico é preciso ter a pretensão de ser) é preciso sim conhecer as especificidades das práticas das mais diversas orientações sexuais, sua essencialidade, não anti-dialeticamente, não para colocá-los em caixinhas a-históricas, não para catalogá-los, porque eles podem sim, mediados por sua prática social, construir-se com uma outra orientação sexual ou de gênero, porém sempre de modo mediado, nunca imediata e fugazmente. Não se combate o machismo, a exploração de classe, a homofobia e a heteronormatividade sem localizá-los na totalidade social, nas determinações essenciais da sociedade capitalista e em relação com as outras bandeiras de lutas, porque o corporativismo de alguns movimentos sociais advém fundamentalmente da falta de conhecimento da totalidade, que cartesianamente separa demandas de gênero, de orientação sexual, étnico-raciais e de classe. Se eu nunca vi rastro de cobra nem couro de lobisomem, não quer dizer que eles não existam objetivamente.