
Não sei se você quando saiu pelo portão se sentiu exatamente culpada por não ter conferido a porta do fundo, mas naquele primeiro sinal vermelho isso foi o que eu desejei com mais força. Essa mania de não querer demonstrar preocupação pelas coisas que deveriam ser preocupação sua irrita qualquer personagem da sua trama matinal.
Você acha que só a certeza de uma cólica já é aborrecimento o bastante pra não precisar se importar com mais nada pelo resto do mês. Os outros infortúnios que fiquem a cargo de quem mais sofre com o produto dessa dor. Eu, o interlocutor das suas terças-feiras de tpm.
Olhando aquele sinaleiro metaforicamente vermelho eu podia jurar que você estava morrendo de arrependimento de ter saído impunemente pela porta da frente, como se tivesse acordado sem precisar dar satisfação da sua existência pra ninguém. O simples fato de ter que manipular um always com abas te desobrigava dos outros aborrecimentos. Para esses, você tinha este cidadão emputecido diante do sinaleiro às dez e quinze da manhã.
Não sei se eram as abas do seu always, mas de fato você também não estava se comportando bem como garupa. Não é possível que toda hora você tenha que ficar jogando o corpo ora de um lado, ora do outro. Não, não é todo dia assim, você sempre foi uma exímia garupa. Não bastasse a sua falta de consciência pesada por simplesmente se negar a cooperar com as tarefas domésticas, você insiste em não colaborar com o equilíbrio mínimo que se espera de uma mulher com tpm a bordo de um absorvente. Que eu saiba a simetria é um dos itens exigidos dos absorventes com abas, portanto não há razão pra tanto desequilíbrio. Agora eu entendo perfeitamente aquela história de duas pessoas numa só, metades da laranja, na saúde e na doença. E eu não poderia entendê-la em momento pior.
Juro que assim que você se livrar das prestações daquele já velho violão, o próximo carnê vai ser de uma outra motocicleta. Uma moto sua, pra você não precisar dar satisfação pra ninguém da sua autonomia te-pe-emística. Talvez a responsabilidade de um tanque pra abastecer lhe de traga outras consciências, e com ela outras responsabilidades. E a noção de que você nem sempre vai ter alguém que te entregue o mundo pronto quando você acordar.
Passado o semáforo e a raiva pela sua teimosa inculpabilidade, até que a fila do banco não estava tão grande. E foi na fila do caixa que você se mostrou mais resistente, incrível. A fila preferencial estava lotada com um velhinho, uma senhora, uma gestante e outro senhor. Imaginei que todos eles por estarem na condição de preferencial estavam de tpm. Eu olhava todas aquelas pessoas às dez e quarenta na fila do banco e via na cara de cada uma delas que se pudessem não estar ali estariam num banco de bosque, num banco de bar, num banco de rio, bem longe dali. Sem always, sem abas. Mas não tem jeito, eles escolheram viver na cidade, e tem que se acostumar com o trânsito, com a fila, e com absorvente. Com o seu próprio ou com o de alguma emburradinha. E então eu entendi a diferença no humor das senhoras sessentistas na fila preferencial. Elas já não tinham esse tipo de preocupação à essa altura do campeonato.
“Não adianta, a fila preferencial não comporta tepeêmicas”. Você se mostrou insensível ao comentário, que nem de longe pretendeu ser engraçado, e continuou indiferente como uma estátua naquela fila. Era ainda a velha tentativa de te fazer remoer a consciência por abandonar a porta dos fundos da maneira como ela estivesse. De fato eu não sabia se ela estava aberta, se estava trancada, se fora roubada. Nesse exato momento eu nem sabia ao menos se ela era branca ou era tabaco, de ferro ou de madeira. O que me incomodava era a sua não-preocupação, ou a sua negação em pelo menos imaginar com estava ela. Era a sua cara de pouca importância quando saiu pela porta da frente, enquanto eu insistia pra você ir conferir.
Mas inútil. A única pessoa que você ouviu durante aquele dia todo foi o rapaz de topete no caixa 4 do banco. Foi a ele que você deu ouvidos quando entregou docilmente o nosso cartão.
E digitou a data do meu aniversário. Entra.
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4 comentários:
gosto muito desses...
você não tá entendendo nada...
always
de quem é esse texto?
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