Retrato em branco e preto

domingo, 28 de setembro de 2008

Esses dias acordando me dei conta que não estava mais em par, e pondo o chinelo me lembrei do porque não mais dividimos nossa escova e nossa lata de coca no cinema.

Era fim de inverno e o edredon já estava quase todo do seu lado da cama. Eu protestava mas você dizia que eu andava muito chato ultimamente. Eu calava com frio.
Levantava e fazia o café. Bebia sozinho no sofá. Você vinha depois, sentava na mesa de calcinha com o edredon nas costas, comendo a bolacha que sua mãe tinha mandado. Depois levantou com a bolacha na boca deixando o edredon no chão. Aquele mesmo que você não quis dividir comigo. Foi no outro quarto, pegou as fotos secas do varal e colocou na mesa da cozinha. Sabia o que significava pra mim essa sua mania de andar de calcinha pela casa. Deixou o edredon lá e entrou no banheiro.


A gente saía, eu fechava a porta, você chamava o elevador e apertava o térreo. Quem cumprimentava o porteiro era só eu, você tinha mudado e não era só comigo. Mas talvez o edredon e o porteiro não tenham notado tanto. Pode ser que o edredon tenha até gostado de mudar pra casa da sua mãe. Eu nunca liguei muito pra ele depois das sete da manhã.
Depois que você voltou a dormir na sua cama de solteira e eu nunca mais impliquei com as suas unhas amarelas e descascadas, meus bom-dias pro porteiro ficaram mais frios. Antes eu dobrava a simpatia pra compensar a sua indiferença. Agora só a minha educação é o bastante.
Hoje acordar é um pouco diferente. Já não tenho mais um edredon, mas uma manta xadrez verde. O café é só pra mim. A pasta de dente dura mais, e no box já não tem mais nenhuma calcinha sua. Sua sala está com o varal de fotos vazio. Você levou todas. Só ficou uma nossa de dois anos atrás, tirada dentro de um ônibus de excursão.
Hoje seu estúdio é no quarto do seu irmão que está no Canadá. Dizem que ficou bem arrumado, que não perde em nada pro que tinha aqui em casa. Dizem também que suas fotos estão mais coloridas.
Além da foto da excursão ficou seu all-star de ovelha. No dia que você comprou não senti que você quisesse mesmo ele.
Talvez tenha comprado só pra largar aqui porque sabia que eu guardaria ele como um amuleto odiado. Deixou pra mim como meio de me provar que eu não merecia de fato aquela metade de edredon.
E acabou que me convenci que seu all-star de ovelha e as suas unhas amarelas descascadas valhem mais que meu café meio amargo.
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A outra metade do retrato
http://confessosentir.blogspot.com/

A dona das unhas amarelas
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Guarda pó

sábado, 20 de setembro de 2008

Saiu pelo portão de grade às dez pra sete da manhã, e encontrou a rua calma, ainda querendo acordar. Com a bolsa a tiracolo, André entrou no mesmo bar com toldo de ferro que entrava todos os dias àquele mesmo horário, e encontrou o mesmo jornalista engravatado dando as mesma notícias que seus ouvidos já estavam mal-acostumados de ouvir, seis dias por semana.
Orácio, o balconista calvo com seu guarda-pó azul leu no indicador levantado que ele queria um café. Não se atreveu a dizer nem 'um cafézinho?!', porque já sabia há uns meses que aquele freguês não era de muita prosa. Pelo menos não nas primeiras horas do dia.
Depois de servir continuou enxugando seus copos americanos, enquanto o freguês bebia calado o café, olhando concentrado pro lugar nenhum à sua frente, com a voz do homem do tempo matutino soando ao fundo no seu ouvido distante. Segundo o mesmo, o tempo continuaria nublado, bem como estava desde a última terça-feira de cinzas.
André não ouvia nem a voz grave do repórter, nem o ronco da moto com o escapamento aberto, que acabava de rasgar a rua em sentido ao centro. O cara da moto era o rapaz que pegava o jogo do bicho, evidentemente que não estava em sua função habitual, se é que ele tinha uma função habitual. Seu ouvido estava mais preocupado com a fumaça do café do que com qualquer outro barulho.
Colocou o copo no balcão e olhou pro relógio de aço prata. Sabia que dali a exatos vinte minutos deveria estar dentro da sala de aula. Com os mesmos 36 alunos de todas as manhãs, no auge de seus mimados 16 anos.
Estava pensando naquele minuto em figuras como Orácio, que estava atrás dele agora tirando o suco das laranjas num espremedor barulhento, e como seu Samuel, porteiro da escola, que todos os dias acordavam antes de todos os escapamentos abertos para colocar a cidade pra funcionar. Antes mesmo de se ligarem os espremedores barulhentos, e dos homens do tempo sentenciarem catastróficas nuvens sem chuva.
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Me pouke, vai

sábado, 13 de setembro de 2008














Em todos os lugares há idiotas. Geralmente é a maioria.

Verdade inequívoca essa.
Não que eu ande por aí achando que as pessoas são idiotas, observando caras e diálogos pra dar o meu carimbo de stupid people em suas testas adolescentes. Feita a ressalva, realmente é uma verdade inconveniente.
Pode mesmo parecer ranzinza, coisa de nego mal-amado, implicância de desocupado.
Coisa bem simples de se fazer nessa pós-modernidade é encontrar um idiota, daqueles idiotas vocacionais. Faça login no seu orkut (que eu sei que você tem um), veja as atualizações da galera que você vai ver quantos estão se pokeando por esse mundo de meu Deus. Sim meu caro. Você aí que está alheio às novidades estranhas da internet, agora tem-se bonequinhos no profile, que você mesmo monta, na medida em que acha que um bonequinho baixinho e cabeçudo daqueles pode parecer com você de alguma maneira. É tipo um second life de pobre, no qual você simula diversas interações estranhíssimas com seus pares: Fulano deu um 'abraço de urso' em Ciclano, Joventino deu um tapa no traseiro do Maroquinha, Colegial-barbie.girl fez cócegas em Amiga-mais-sincera-de-todas, Bolero-gatinho-da-balada deu risada junto com Hardecore-de-óculos-quase-cult. Bem vindo ao nosso mundo virtual pós inclusão digital.

Diz-se que o Second Life não é jogo, é Simulador social. Ora, se já se pode dar risada, contar piada, fazer fofoca através de vuduzinhos, pra que ter uma vida social realmente real, afinal essa me parece assim muito menos interessante. Escrevamos em nossos teclados o script da nossa semana. Imagino o sentimento de irmandade que não devem ter duas pessoas que dão risadas juntas via Buddy Pokke. Sim porque a graça nunca acaba. Aquele momento ficou registrado em algum byte aleatório pela internet, e essa ainda não é a graça maior.
O grande barato do 'Buddy Pokke' (além da grande semelhança com o Chuck, claro) é na verdade a vontade de mostrar pro mundo o quanto você é bem relacionado com as pessoas, o quanto aquela sua amiga é essencial pra você (essencial se tornou a palavra mais digitada do orkut), o quanto vocês são zuera dando risadas juntos (nóis é foda!), e quantos 'bafões' da galera vocês compartilham juntas, dado o grau de intimidade nuclear que vocês têm.
Afinal, 'tecnologia existe pra salvar o homem do fim, se você estiver triste, delete a tristeza assim'.

Juventude, vá ler nelson rodrigues e deixe de ser besta.
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Aspas

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

No mais, tudo é menor. O socialismo, a astrofísica, a especulação imobiliária, a ioga (...) O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina. Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira

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Aceita uma revolución?
Não, obrigado, parei com isso.
Ah, que bom! Como foi?
Um método americano, ótimo!

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Eu presto atenção no que eles dizem mas eles não dizem nada


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Toda forma de poder é uma forma de morrer por nada
Toda forma de conduta se transforma numa luta armada


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Poemas pedagógicos

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Alunos desocupados de Pedagogia, revoltados com a poesia dita 'conceitual', publicada na revista Piauí, resolvem fazer seus próprios poemas conceituais.
Trabalho inédito e jamais publicado, fruto do trabalho meu e do Companheiro Rafa. Na escola, na militância e na luta, uma parceria de educadores cafajestes


Filósofa

é que nem o meu filho ontem
meu cunhado, minha irmã
o meu marido, a mãe
a vizinha do Gui
a professora
(alienada)

Quebrar com idéia

Pra Piaget,
Construir é mais legal
que essa conversa engajadinha
de histórico-social.

Pois pra Vigotsky
A infância não cresceu
e ser adulto é um engano
Muito tolo e tão ingênuo
como todo bom piagetiano
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