Caso incomum de trânsito

domingo, 3 de abril de 2011

Ia descendo a Nações Unidas em direção ao centro da cidade por volta da hora do almoço de um sábado cinza de abril. Navegava com sua motocicleta pela avenida e já perto de casa viu o sinal amarelar pouco à sua frente. Não adiantaria acelerar, pois àquela distância o vermelho era um óbvio ululante e inevitável.
Parou e começou a esperar a eternidade efêmera que é cada segundo nos semáforos de cada esquina dessa Cidade Sem Limites pra paciência. De repente ouviram-se três buzinas do carro de trás, um carro grande e prata, que colocava algum respeito naquele grid de largada. Abstraiu, certo de que não era com ele. Ainda tentou reconhecer pelo retrovisor algum possível conhecido. Não conhecia, certamente a moça buzinou pra outro alguém que passava ali na praça.
Não mais que de repente viu pelo retrovisor a tal criatura impaciente dentro do carro, tirando o cinto com pressa. Cogitou a possibilidade de a moto estar em chamas e ele ignorar esse fato, de modo que a moça estaria tentando alertá-lo do perigo iminente de morrer carbonizado na Nações Unidas, mas eis que ela sai do carro no meio da rua e vem em sua direção.
Certamente ela ia tirar satisfação por uma seta não dada algumas esquinas atrás, afinal é uma pessoa extremamente convicta da importância da seta no trânsito de uma cidade média. Ou então vem avisar que sua moto está muito suja, sim, seria plenamente possível, afinal ela estava imunda, mas quem, diabos, desce do carro no meio da rua com o semáforo fechado com tal intenção? Não, provavelmente não era com ele, ela iria dar um recado em outro carro que a acompanhava para uma viagem, porque provavelmente precisava rever o nível de água do motor.
Todas essas hipóteses se mostraram falsas, mas não mais absurdas do real propósito que tinha aquela mulher ao abandonar seu carro no meio da rua na espera pelo sinal verde. Ela abriu a porta, desceu do carro, veio correndo até ele e disse:
__ Moço, você não quer me vender esse chaveiro que tá na sua mochila?!
Ele não fazia rigorosamente a menor idéia se sua mochila tinha um chaveiro, afinal ele só a usava pra viagem, muito menos de que chaveiro se tratava. Naquele minuto ele só tinha certeza de duas coisas. Uma que essas coisas estranhíssimas não devem ser tratadas como qualquer coisa, elas fazem parte de um pequeno conjunto de fatos improváveis e o improvável deve ser tratado como sacro. E depois seja lá qual fosse o chaveiro que estivesse naquela mochila não seria nada que não merecesse ser posto à venda em nome daquela condição tão peculiar. Mas o sinal acabara de esverdear, e ele rapidamente respondeu “Só um minuto”.
Encostou a moto, enquanto ela voltou correndo ao carro e encostou logo ao lado. Ele desceu, tirou a mochila e viu que o chaveiro era desses tipo mosquetão de alpinistas, porém absolutamente ordinário, desses que se ganha em oficinas quando se troca o óleo, desses que se perde na rua, sem o menor valor comercial. Mas não era o valor de troca que importava aí. Importava negociar um chaveiro cretino no meio da rua com uma desconhecida, que não pensou o quão ridícula estava sendo, se interessando pelo chaveiro da mochila do motoqueiro que parou à sua frente no semáforo.
Na calçada reconhecendo o chaveiro e perguntou:
__ Esse?!
__ É, eu perdi minha chave dessas de partida na enxurrada, porque ela não encaixa direitinho aqui, sabe, então eu precisava de um desses igual o seu.
Ele cogitou dar o chaveiro a ela, não faria a menor diferença, mas aquilo tudo era uma digressão tão definitiva na desacelerada mecânica cotidiana daquele sábado que seria muito mais interessante levar aquilo tudo a sério e estabelecer uma relação do valor de troca pelo sagrado valor de uso daquele artefato sagrado.
__ Tá. Quanto você dá nele?
__ Não sei, dois, três reais?
__ Tá, pode ser.
Ela abre a carteira, duas notas de 2.
__ Tó, 4.
__ Beleza.
__ Obrigada viu moço!
E ele, incrível daquela situação esquisitíssima, respondeu:
__ Tá, tranquilo, obrigado!

Partiram os dois, ela jamais arrependida por ter cometido a mais completa absurdez, mas segura de que sua chave não irá mais se perder na próxima enxurrada. Ele seguiu rindo sozinho.
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